Como fazer sua Empresa Sobreviver quando Você Não estiver mais lá

Durante décadas, discutiu-se sucessão como um destino natural: o patriarca passa o bastão ao filho, que dá sequência à missão familiar. Essa visão, embora romântica, é cada vez mais insuficiente.

Rafael Albuquerque 03 Jun 2025
  Empresas Familiares

Empresas Familiares

Como fazer sua Empresa Sobreviver quando Você Não estiver mais lá

Em um mundo onde empresas vivem mais que seus fundadores e famílias têm cada vez menos filhos, a continuidade dos negócios deixou de ser uma questão biológica e passou a ser um projeto institucional - é o tema do primeiro artigo da Coluna Not Opinion, do Not Journal, pelo advogado especialista em gestão patrimonial Rafael de Albuquerque. 


Durante décadas, discutiu-se sucessão como um destino natural: o patriarca passa o bastão ao filho, que dá sequência à missão familiar. Essa visão, embora romântica, é cada vez mais insuficiente. Em empresas familiares, o desafio não é apenas encontrar quem possa continuar — mas construir legitimidade para quem vier. Já entre empreendedores que criaram seus negócios do zero, a sucessão se complica pelo apego simbólico: a empresa se confunde com o fundador, e o fundador não se imagina fora dela.

Ambos enfrentam, portanto, um mesmo dilema: como tornar a continuidade independente da presença — sem perder a identidade?


A lição do Japão: o que acontece quando ninguém quer — ou pode — continuar

O Japão, que concentra uma das maiores populações empresárias longevas do mundo, tornou-se um caso emblemático da crise sucessória. Mais de 50% das empresas não têm sucessores definidos. A consequência? Centenas de companhias centenárias encerrando atividades não por insolvência, mas por ausência de continuidade. A crise é tão estrutural que o governo japonês criou mecanismos nacionais para estimular a sucessão como política pública: desde programas de matching entre fundadores e profissionais urbanos, até estímulos fiscais para quem assume empresas regionais em risco.

Mais do que uma crise de governança, o caso japonês expõe o risco sistêmico da ausência de planejamento: sem sucessão, mesmo empresas saudáveis se tornam inviáveis. E o alerta se estende ao Brasil, onde a transição geracional está prestes a enfrentar sua prova mais difícil — com famílias menores, fundadores mais longevos e sucessores cada vez mais ocupados em construir suas próprias trajetórias.


Empresas Familiares: continuidade como projeto intergeracional

Em estruturas familiares, a governança eficaz precisa ser mais do que um conjunto de documentos: deve ser um sistema vivo de gestão de expectativas, capital relacional e alinhamento entre gerações.

As famílias empresárias que alcançam múltiplas gerações de sucesso tendem a adotar cinco práticas fundamentais:

1. Formalização do Conselho de Família com mandato, pauta e integração sistêmica com a governança corporativa.

O conselho de família não é um espaço simbólico — ele atua como guardião da cultura e mediador das decisões de longo prazo que envolvem propriedade e legado.

2. Preparação dos futuros líderes por meio de experiências externas, mentorias estruturadas e critérios objetivos de entrada.

A nomeação de herdeiros para cargos de liderança não ocorre por tradição, mas por readiness. Muitas famílias globais utilizam o modelo de “leadership tracks”, com avaliações periódicas e vivência internacional obrigatória.

3. Separação clara entre propriedade, gestão e governança.

Inspiradas em estruturas europeias, empresas familiares bem-sucedidas estabelecem protocolos que permitem que familiares sejam acionistas sem estarem na gestão — e gestores profissionais atuem com autonomia mesmo sem sobrenome no contrato social.

4. Construção de um legado narrativo.

Documentar valores, princípios, marcos históricos e filosofia empresarial não é apenas um gesto institucional: é uma ferramenta de coesão e transmissão cultural. Algumas famílias usam legacy charters ou books of origin para este fim, revisados a cada geração.

5. Transição como jornada, não como evento.

Sucessões bem-sucedidas são planejadas com cinco a dez anos de antecedência. O fundador passa progressivamente de CEO a mentor, depois a chairman, e por fim assume um papel institucional ou consultivo, sem interferência na operação.


Empreendedores Self-Made: o desafio de institucionalizar o próprio Eu

Empreendedores que construíram suas empresas do zero enfrentam um obstáculo distinto: a substituição de uma liderança que concentra poder, cultura e direção estratégica em um único ponto. Aqui, o problema não é herança, mas dependência.

Os métodos internacionais mais eficazes incluem:

1. Formação de um comitê de sucessão com conselheiros independentes e investidores estratégicos.

Nos EUA e Reino Unido, é comum que esse comitê atue como guardião do processo, traçando o perfil ideal do próximo CEO e garantindo que ele tenha legitimidade perante stakeholders internos e externos.

2. Implementação do modelo de Shadow CEO.

O sucessor atua por meses ou anos sob supervisão, com metas reais, autoridade parcial e acompanhamento por pares e board. O modelo é utilizado por grandes conglomerados industriais na Alemanha e Suíça como mecanismo de transição gradual e mitigação de riscos.

3. Separação entre operação e capital por meio de estruturas de stewardship ou fundações de propósito.

Exemplos como Bosch (Alemanha), Carlsberg (Dinamarca) e Rolex (Suíça) mostram que é possível manter a missão original de uma empresa por gerações sem depender de herdeiros diretos, mas sim de estruturas jurídicas sólidas com conselho curador.

4. Designação de um papel institucional para o fundador.

Após a transição, o papel do fundador precisa ser reconfigurado: seja como embaixador da marca, conselheiro estratégico ou investidor. O importante é que a nova liderança opere sem ambiguidade ou veto informal.

5. Comunicação estratégica com mercado e cultura interna.

A transição deve ser planejada como uma narrativa — com mensagens consistentes para clientes, funcionários e investidores. Empresas bem-sucedidas tratam a sucessão como um rebranding silencioso, onde o foco é a continuidade, não a substituição.


Quem sustenta o futuro quando a biologia não resolve?

A sucessão de uma empresa nunca foi apenas uma questão de liderança. Ela é, antes de tudo, uma questão de projeto, de intenção e de estrutura. O caso japonês evidencia que mesmo empresas sólidas e tradicionais, quando não se preparam, colapsam — não por falta de produto com “market fit”, mas por falta de sucessor.

Famílias empresárias e empreendedores precisam abandonar a ideia de que continuidade é algo que “se resolve depois”. Porque o verdadeiro legado não é aquilo que você deixa — é aquilo que continua mesmo quando você não está mais lá para explicar.


Sobre o Autor: Rafael Gonçalves de Albuquerque é advogado de famílias de alto patrimônio líquido no Brasil e no exterior. Assessorou indivíduos com alta exposição midiática e grandes patrimônios nos EUA. Autor do livro “O Impacto da Passagem de Patrimônio para as Novas Gerações". É sócio do Marins Bertoldi Advogados e co-fundador do Multi-Family Office Catalysis Wealth.


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